terça-feira, 2 de outubro de 2012

Ficamos assustados ao se deparar com a propaganda eleitoral obrigatória, e o texto brilhante que colocamos novamente (foi objeto de postagem do blog em março/2011) sintetiza as origens dessa política intervencionista permeada de oligarquias a serviço da manutenção da política do "pão e circo".
É com indignação que vemos pessoas defendendo iniciativas ao disputar cargos que não lhe permitem realizar suas promessas de campanha, haja vista não ser da alçada do cargo que pleiteia.
A segurança é o tema escolhido para as muitas promessas de campanha e como não poderia deixar de ser, há os que se apresentam como solução para nossos problemas, inclusive alguns oriundos de instituições de segurança pública. Desses, alguns em cargos de importância e de comando, na esfera estadual (responsável pela segurança pública), que poderiam colocar em prática ações para combater a criminalidade, hora e lugares certos para mudar nossa triste e temerária realidade, mas infelizmente não foram capazes de fazê-lo a época, por falta de condição ou de vontade política. Não será em cargos municipais que poderão realizar por não ser competência desses pretensos administradores públicos.
Essa demagogia nos remetem a alguns ministros da fazenda, dos vários governos que se sucederam em nossa longa história política. Enquanto estavam no poder nada mudavam, ao sair do cargo se tornavam consultores, portadores de soluções mirabolantes para o problema (na época) de nossa inflação galopante.
Esperamos que o povo brasileiro, mais uma vez, saiba votar...

Procura-se o povo brasileiro, um decantado desconhecido*

por José de Souza Martins

Um mistério preside a República, o mistério do desencontro entre o povo e o poder. É estranho um país em que quanto mais se informa mais desinformado o povo fica. Na região do ABC, berço do Partido dos Trabalhadores e berço político de Lula, a região mais rica do país, em pesquisa eleitoral desta semana, às vésperas da eleição, apenas 22% dos eleitores da “classe E” ouviram falar do “caso do dossiê”. Esse setor de uma população amplamente exposta à influência da mídia, especialmente o rádio e a televisão, vota, mas não sabe por que vota e em quem está votando. Portanto, o não ter ouvido falar não vem da falta de informação, mas da falta de compreensão da informação, como se fosse dita numa língua estrangeira. O que esperar de regiões em que a “classe E” é a quase totalidade da população? Regiões cujos votos podem decidir o destino político do país?

Ao longo da nossa história republicana, muitos foram os fatos, envolvendo partidos políticos e pessoas, suficientes para cassar mandatos, tolher ambições políticas e até mesmo banir da vida pública. No entanto, poucos foram alcançados pelo chamado “braço da lei” e poucos tiveram a dignidade da renúncia. O pior de tudo é que o eleitorado, com freqüência, como nesta eleição de outubro de 2006, manda de volta ao poder figuras que num país sério ficariam fora dele para sempre.

“O povo não sabe votar”, já ouvi muitas vezes e tenho ouvido nestes dias. “Povo ignorante, político corrupto”, li num muro, em trêmula pichação, numa das últimas eleições. Essas concepções depreciativas do povo são injustas. Esquecemos das heranças pesadas que levamos nos ombros. Os analistas da situação social e política querem pensar o Brasil como um país moderno, voltado para o futuro, negando-se historicamente todo o tempo. O que existe do passado no nosso modo de ser, no nosso modo de pensar, nas nossas insuficiências e no nosso atraso seria mero resquício de uma realidade em extinção, que não comprometem nossa ânsia coletiva de deixar o passado para trás e mergulhar de vez no futuro.

No entanto, o passado que nos trava está mais presente entre nós do que qualquer um de nós possa imaginar. Desde o modo de falar, passando pelo modo de viver, até o modo de pensar a vida e a política. Ainda falamos em todo o Brasil um resquício da língua nheengatu, que se poderia chamar de língua nacional brasileira ou língua do povo. Foi uma língua criada pelos missionários jesuítas, provavelmente com grande influência do gênio que era o padre José de Anchieta. Baseada na língua tupi e organizada com base na gramática portuguesa, difundiu-se por toda a costa do Brasil. É ainda falada em vários lugares do país e não faz muito houve até mesmo tentativa da Anatel de proibir o seu uso em programas de rádio destinados às comunidades nheengatu-falantes no Mato Grosso do Sul e no Alto Rio Negro. Alegava o órgão oficial, em português, uma língua estrangeira, a proibição de transmissão de programas em língua estrangeira, como o nheengatu, na verdade a língua brasileira. Nessa última região, no município de São Gabriel da Cachoeira, o nheengatu é língua oficial e os documentos municipais devem ser publicados nela e em português.

Nem nos damos conta de que nossa geografia é predominantemente nheengatu. Só na região paulistana: Jaraguá, Ipiranga, Moóca, Carapicuíba, Butantã, Itapecerica, Embu. Ou que está na fala cotidiana: falá, contá, mexê, caí, rezá, votá, elegê, cassá, reelegê! Quando os brasileiros foram proibidos de falar essa língua, no século 18, e obrigados a falar a língua estrangeira que era o português, língua de administração colonial, de cartório e de Justiça, tiveram dificuldade para fazê-lo. Com a proibição, o português começou a ser falado com sotaque nheengatu: orelha virou orêia, rezar virou rezá, mulher virou muié. Nasceu o dialeto caipira e sertanejo que, em vez de acabar, sobreviveu e divorciou o português escrito do português falado, o da consciência social e popular.

Essa era uma língua da servidão. Está aí o “mecê” caipira e o próprio “você” urbano, filhos, ambos, do “vossa mercê” com que os ínfimos tratavam os seus senhores. Mais do que um vocabulário, nessa linguagem sobrevivente há parâmetros de consciência relativos à subalternidade. Raramente dizemos uma sentença inteira. Nossa fala cotidiana tem sujeito e verbo, raramente objeto e complemento. Diferente do que ocorre com a língua portuguesa em Portugal, sempre dizemos as coisas pela metade: “Eu vou”, mas não dizemos para onde vamos nem quando.

Essa é a linguagem do medo, de quem não pode dizer uma sentença completa porque não tem certeza. Ou, sobretudo, porque a linguagem incompleta é a linguagem dos subentendidos, da certeza de que o outro saberá o que estou dizendo. Linguagem da dissimulação, da vergonha e da subserviência, do faz de conta. Dizendo metade, digo o que o outro quer ouvir e, de certo modo, me permite dizer. Não me exponho à crítica, à censura nessa linguagem de duplo sentido. Sempre deixo um resto de sentença para completar conforme o andamento da conversa. Como pode um povo, cuja consciência política é expressão de uma fala mutilada, se tornar um povo político?

Essa língua tem sentido nas relações políticas que são ao menos tempo relações de dominação pessoal. O que hoje chamamos de corrupção não o era até não muito tempo atrás. O mundo colonial, que atravessou o Império e se estendeu pela República, subsistindo ainda nos nossos relacionamentos sociais e políticos, era o mundo dos potentados rurais, dos senhores de gado e gente, como diz a canção, de senhores de escravos e de agregados. Ao menos até o século 18 eram eles chamados de pais da pátria. Era o mundo do mando e da obediência servil. Mas era também o mundo em que o patrimônio privado alimentava favores e dependências, circunscrevia até mesmo a liberdade dos livres.

Quando se começou a votar, o número de eleitores era ínfimo em cada município. Onde viviam centenas e até milhares de pessoas, os eleitores eram meia-dúzia, reduzidos numericamente pela peneira de malha fina que assegurava a coincidência de patrimônio e poder. Quem tinha bens, tinha poder. Quem tinha poder, tinha mais bens. Em troca de favores políticos, receber benefícios que se traduziam em patrimônio, na conversão do que era público em privado, fazia parte do jogo político e da cultura servil de que a política se alimentava. Não era corrupção. Eram relações de interesse. Isso se agravou na República, com a política de favorecimento dos amigos e aliados na distribuição e aforamento de terras. De certo modo, a dominação patrimonial ainda subsiste, alterada e disfarçada. Todos levamos a marca do ferro em brasa dessa cultura da obediência sem crítica, a ponto de que haja quem justifique com as conveniências da política as inconveniências da corrupção. E já não estamos no Império para que subsista essa mentalidade de escravo.

Esse é o cenário da lenta e contraditória emergência do povo como sujeito político. Foi com a República que surgiram os mais evidentes esforços para descobrir e afirmar a realidade de um povo brasileiro. Se não existia, o povo tinha que ser inventado. E o foi. São dessa época obras de arte, na música, na poesia, na pintura, na escultura, voltadas para a expressão de um imaginado povo brasileiro. Mais do que ninguém, as elites se empenharam numa busca das raízes e da cara do povo, aquela em cujo espelho todos nos reconheceríamos. O pintor paulista Almeida Júnior, no fim do século 19, elegeu o caipira, o mestiço de branco e índia, como a figura humana que nos retratava, na face e nos modos. O espanhol Broco y Gómez, que estudou pintura no Brasil e aqui se radicou, expressou essa busca, em 1895, no mulato, com a tela simbólica “A redenção de Cam”, que se encontra no Museu Nacional de Belas Artes. O antigo escravo indígena e o antigo escravo negro redimiam-se na mescla com o branco para a constituição imaginária de uma nação mestiça que se branqueava. A república nascia mestiça, querendo ser branca. Negava aquelas origens no apagamento da memória. A república e o povo nasceram no faz de conta de uma história sem passado, um povo debruçado sobre uma página em branco. Mas o passado continuava regendo a vida, na língua e na consciência social.

É verdade que a nossa república nasceu torta, em conseqüência de um golpe de Estado dos militares, mais contra os republicanos civis e do que contra a monarquia. Nasceu enquadrada e o povo nasceu politicamente confinado. Não obstante, os constituintes de 1891 reuniram-se em congresso, pela primeira vez, como representantes do povo brasileiro. Um grande avanço em relação à Constituição imperial de 1824, redigida em nome da Santíssima Trindade. Só na Constituição de 1934 os constituintes afinal reconheceram o povo no singular: “todos os poderes emanam do povo, e em nome dele são exercidos.” Mas, que povo, afinal?

Já na Constituição do Império, falava-se em nome dos cidadãos. Mas havia nela uma lista de exceções: menores de 25 anos, criados de servir, religiosos de comunidades claustrais. Eram os que não podiam votar nem ser votados. Havia os que podiam votar, mas não podiam ser votados, porque sua renda era inferior a determinada quantia. Havia silêncio sobre os escravos e sobre as mulheres, que sequer eram reconhecidos como sujeitos de direitos políticos, por sua condição de coisa ou de agregada. Só em 1932 as mulheres tiveram seu direito de voto incorporado ao Código Eleitoral e, em 1934, à Constituição Federal. Nesse ano, uma primeira brasileira foi eleita deputada federal: Carlota Pereira de Queiroz.

A história do povo nas constituições brasileiras é a história do seu progressivo, mas lento, reconhecimento como sujeito político. A primeira constituição republicana, de 1891, alargou conceitualmente a idéia de povo ativo, de cidadão, mas revigorou e ampliou o elenco das pessoas sujeitas a restrição de direitos políticos. Como já não havia escravidão, surgem no texto os substitutos conceituais dos cativos: o texto vetava o alistamento eleitoral de analfabetos e mendigos. Continuarão vetados na Constituição de 1934 e na de 1937. Os mendigos deixam de ser mencionados na Constituição de 1946. Só em 1985 foi revogado o veto ao voto do analfabeto. Ao longo do tempo mudaram-se os rótulos para manter basicamente as mesmas interdições, o povo encolhido nos limites de uma cidadania mutilada.

O povo brasileiro é um povo residual da história e das artimanhas do poder. Ainda é um povo descartável, que se incorpora como sujeito do processo político basicamente nos dias de eleição. Ou então, como mero sujeito da nacionalidade, nos tempos de Carnaval ou de Copa do Mundo, a identidade bonita, mas inócua e passiva, de quem não tem alternativa senão viver para ser visto ou para ver. Somos um povo que se propõe nas exceções e não no dia a dia do sempre. Nossas revoluções para transformar nunca foram revoluções do povo. Afirmamo-nos como povo no negativo, no noticiário policial, na esquizofrenia das revoltas populares inconclusas e sem rumo. Ganhamos cara de povo na repressão e no sofrimento. Canudos e Contestado foram revoltas provocadas para justificar a repressão republicana do Estado, revoltas religiosas e autodefensivas, em nome da tradição!

Dizem que este é um povo de maus cidadãos porque algum tempo depois das eleições já nem sabem em quem votaram. Eu diria que este é um país de maus políticos, que algumas horas depois das eleições já não se lembram de quem votou neles, não se lembram dos compromissos éticos e políticos que invocaram para colher os votos. Não se lembram de que o mandato não lhes pertence. O povo não pode se lembrar de quem não se lembra dele, de quem faz da eleição uma loteria e não uma relação política. O político brasileiro, com as óbvias e reconhecíveis exceções, não tem com o povo uma relação cidadã. Ao adulterar o sentido da representação política, como temos visto nestes tempos de desilusão, solapa o protagonismo do povo e saqueia o próprio mandato.

José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP.
*Texto publicado originalmente no O Estado de São Paulo, ano 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário